Histórias, algumas reais

domingo, 25 de maio de 2008

O dia em que me chamaram Vaca

Fim de tarde amena como só Agosto permite. Após mais um dia de trabalho, chego a casa estafada.

Mas hoje, livre das obrigações maternais, pego no cão (pego é como quem diz: ele pesa tanto quanto eu) e vamos treinar para a Baía.

O céu tem a cor do pôr-do-sol e a serenidade é contagiante. Vamos pela areia junto ao rio.

Gaivotas, e alguns pescadores. Ah, como estes treinos são revigorantes: uma verdadeira lufada de ar fresco para os pulmões e para a alma, e um bom exercício para os músculos. É que isto de correr à beira rio com um cão que tem medo da água e que passa o tempo a puxar-nos para a areia seca, tem que se lhe diga!

A dada altura, a uns cinquenta metros do nosso caminho, e com uma vedação a separar-nos, está um grupo de rapazes adolescentes.

De repente, ouço em altos gritos: "Vaca!!! Vaca leiteira!!!" Primeiro fico surpresa. Estou habituada a que não se metam comigo quando levo o cão, mas desta vez a distância e a vedação fez com que os jovens ganhassem "coragem". Logo de seguida tive vontade de lhes gritar que vaca leiteira era a mãezinha deles. Mas como a minha própria mãe me ensinou: mulher honrada não tem ouvidos, resolvi ignorar.

Na realidade não ignorei e a prova disso é que estou aqui a escrever. Numa época em que já não devia fazer sentido a luta da mulher pelo direito à igualdade de oportunidades e de tratamento, como existem jovens com aquele tipo de atitude para com uma mulher que devia ter o direito de vestir uns calções e uma t-shirt e fazer o seu treino sem ser obrigada a ouvir tais "mimos"?

Defensora em absoluto da Revolução de Abril, não deixo de me questionar onde está a Liberdade?

Naqueles rapazes que pensam ter o direito de dizerem o que e a quem quiserem, ou na mulher que tem o direito de vir para a rua correr? Nesta aprendizagem da liberdade estes jovens e originalmente os seus pais, ainda não perceberam que a liberdade de uns acaba quando começa a dos outros.

É mais fácil mudar um regime do que mudar mentalidades. E isso ainda vai levar algumas gerações. Quando será encarado com a mesma naturalidade uma mulher ou um homem a correr?

Não é por acaso que aquelas que correm, ou estão sozinhas, ou então o namorado/marido também corre. Casadas a correr, sem o marido correr também, quantas há? E o contrário? Ah, o contrário já toda a sociedade acha natural: eles correm, elas ficam em casa, ou então tomam conta dos filhos e dão apoio na corrida, que é uma atitude tão bonita! E a sociedade acha isso natural! E o papel da mulher fica cumprido!

Infelizmente, para algumas mulheres, Liberdade é conduzir com o cigarro na boca e dormir com este e aquele. Pois para mim Liberdade é poder correr sem ser importunada. Só quando se mudarem as mentalidades, é que poderá haver realmente Liberdade e Igualdade.

Voltando à vaca fria: Vaca leiteira, eu?! - Para minha contrariedade, só visto o 32 de soutien, e além disso nunca percebi essa mania de se associar a vaca a algo depreciativo e negativo. Eu até acho a vaca um animal muito ternurento e simpático. Não acham?
Ana Pereira - 2001/2002