Histórias, algumas reais

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Partida

Ajeitou o cabelo à miúda e limpou-lhe melhor os cantos da boca ainda alaranjados do sumo das duas únicas laranjas existentes na fruteira e que ela lhe tinha acabado de espremer.

Saiu de casa sem ter ninguém de quem se despedir. Partiu livre por fim. Partiu livre mas não ia feliz.

Meteram-se no carro e na auto-estrada uma vez mais. A pequena adormece e fica o rádio ligado para não deixar soar em murmúrio que fosse, os pensamentos dela. Os pensamentos… quem os controla? Demasiado perigosos para a hora e o local. E a paisagem negra só porque é noite, fica-lhe para trás vertiginosamente enquanto ela avança para o vazio.

Apresentou-se-lhes para o fim-de-semana com um ar desolado e desarranjado. Como condenado a caminho da forca. Tentou sorrir mas a sua tristeza mal disfarçada por um sorriso também triste não passou despercebida a ninguém.

Pouco falou e estava ali a cumprir a pena. A pena de estar viva e de ser mãe. Faz aquilo e isto e tudo o resto pela filha. Para ela é já tarde e os portões estão fechados e o caminho vedado. E as forças que lhe restam são já insuficientes porque ela baixou os braços e não os consegue nem quer levantar.

Sorrisos sarcásticos de quem se julga inatingível por certos dramas fizeram-na esforçar-se por conter as lágrimas que se acumularam em forma de nó difícil de desfazer na garganta. Incompreendida e só, foi como se sentiu. Uma imensa solidão*. E sentiu a dor, aquela que a acompanha há décadas e que ninguém compreende. Nem sequer ela…

Ana

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* Definições de “solidão” dadas por Chico Buarque numa entrevista a um jornalista:

Solidão não é a falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo... Isto é carência!

Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar... Isto é saudade!

Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vezes para realinhar os pensamentos... Isto é equilíbrio!

Solidão não é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsivamente... Isto é um princípio da natureza!

Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é circunstância! Solidão é muito mais do que isto...

SOLIDÃO é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

UMA QUESTÃO DE DESMOTIVAÇÃO

Não sou uma jovem atleta para com a qual se tenha de ter determinados cuidados para evitar que venha a detestar a corrida poucos anos mais tarde. Sou apenas uma mulher a correr. Uma das poucas. Uma das que correm e têm também no seu companheiro (marido/namorado) um corredor assíduo. Mas há coisas que nos mudam a vontade, definitivamente ou não.

Sempre gostei de correr. Comecei com sete, oito anos, no Grupo Desportivo de Vialonga. Não sei se fiz duas épocas completas, pois a discriminação na atribuição de ténis novos fez com que a minha mãe me retirasse do clube. Fez bem. Lembro-me dos treinadores sempre me incentivarem e me congratularem mesmo quando ficava quase em última, mas pelos vistos, quem mandava não concordava que se apoiasse todos os atletas da mesma forma, mesmo tratando-se de crianças!

Voltei a correr com o meu irmão mais velho por volta dos meus 14 anos, de forma a emagrecer e melhorar a forma e o aspecto físico. Fui correndo com uma frequência muito irregular. Tudo dependia da vontade. E a vontade é quase tudo. Eu gostava mesmo de correr, de suar, esforçar-me e conseguir, sentir o ar na cara e o cheiro da terra molhada do pinhal, sempre explorando novos trilhos, ouvindo os pássaros, assustando os coelhos e outros bichos. Gostava de sair de casa com equipamentos inventados e enfrentar os olhares reprovadores das vizinhas. Era uma adolescente e ia correr muitas vezes sozinha. Isto aconteceu há 15 anos atrás.

Anos mais tarde, pelos meus vinte e tal anos, encontrei alguém, que é hoje meu marido, e comecei a correr com alguma regularidade, pois ele também gostava de correr.

E tudo começou por uma "Mini" da Ponte, em 1996. Uma brincadeira que adorámos! E a partir daí, começámos a participar em provas abertas a todos. E foi uma cavalgada que nunca mais parou.

Só que o ritmo se tornou alucinante. Como "obrigatório", tínhamos já o Troféu da Câmara Municipal de Oeiras - Corrida das Localidades, também o Troféu da Câmara Municipal de Almada, onde corria como veterana, apenas com 30 anos de idade, e por isso "tinha algumas hipóteses", dizia o meu marido, e todas aquelas provas populares que fazem parte da agenda de qualquer atleta de pelotão.

Todos os dias saio de casa para o emprego por volta das 7h45m e regresso às 20h00.
Tenho uma filha de 2 anos e meio. A lida da casa é sempre da mulher ( por muito que se fale de igualdade ). Treinos: sozinha, às 5:45 da manhã, em ruas escuras e desertas, e numa pista de atletismo, fechada a essa hora, onde aprendi a pular muros e a entrar clandestinamente, a ouvir as aves nocturnas e as mais madrugadoras, incomodadas por aquela intrusa de roupas com tiras reflectoras. Aos domingos: provas!


Quando pseudo treinadores conseguem transformar prazer em obrigação, quando o amor e o comportamento são postos em causa pelo facto de se correr ou não se correr, quando nos ameaçam se o nosso peso não baixar, ou se não treinamos, ou se estamos cansados, ou se simplesmente não correspondemos no treino ou na prova, se não cumprimos o programa de treinos estipulado, se há castigos e recompensas psicológicas em função do nosso comportamento na corrida, então começa-se a pensar no peso exagerado que a corrida tem na nossa vida e a meditar profundamente no que é afinal importante. Eu comecei a sentir que precisava de me libertar, de me sentir livre para não correr, para poder escolher. Precisava de parar. E parei...

Não sei quando nem se voltarei a correr. E eu gostava! Gostava mesmo! Mas hoje para mim, não correr é uma arma. É um desafio, uma luta, onde o que conta é a minha vontade. Hoje, deixei de ter vontade de correr e até talvez de viver, mas isso é outra história. Estou amarga e choro. Parei de correr e não sou ninguém...

Ana Pereira
2001