Histórias, algumas reais

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Obrigado Senhor!


Sou um velho a quem, não os anos, mas sim a doença, tirou o prazer de correr.

Mas agradeço Senhor, por nesta minha vida me teres dado o dom de me saber reconhecer e encontrar quando me foi possível correr.

A minha vida foi sempre uma nulidade. Tinha a mulher e os filhos. Ganhava para eles, mas era efectivamente um pai e marido ausente. Abafado pela autoridade feminina da casa, isolei-me no meu trabalho, na Columbofilia , e também um pouco no álcool, confesso.

Os filhos cresceram, e eu estive sempre um pouco aparte.

Reformo-me, e com a minha filha, parece que agora, eu velho, ela mulher, nos encontramos, e dou, agora eu, os meus primeiros passos, na corrida. No pós-reforma, a corrida tornou-se então a minha vida! E fui feliz Senhor, nesses breves anos em que tive a dádiva de poder correr, e ouvir o bater do meu coração e os meus passos no chão, e encharcado em suor alcançar mais uma meta em cada prova em que participava!

E senti-me vivo, Senhor! Ah, Senhor, como fui feliz nessa breve passagem da minha vida (pouco mais de dois anos). Sentir o ar na cara e a minha alma elevar-se como nunca se elevara na vida! Tentar, arriscar, ousar, eram palavras que eu nunca usava e que com a corrida, foram todas postas em prática e superadas! Tanto que a corrida me deu!

Depois de me mostrares essa luz na vida, voltas a apagá-la, Senhor! Com esta doença é-me vedada a corrida e só me é permitido pouco mais do que caminhar lentamente.

Agora, vou ver a minha filha correr, e trémulo, seguro a mão da minha netinha e tomo conta dela para a mãe poder correr! Afinal, ainda sou útil. E alegro-me com as suas conquistas e assim vivo ainda um pouco a corrida, mas dentro de mim há um imensa tristeza apenas compreensível para quem ama a corrida. Todos os outros me chamam de louco, velho tonto!

Mas Senhor, quando por fim descansar no meu caixão, estarei feliz, porque vou olhar para trás e ver que nesta vida me foi dada a alegria de poder correr. Como aquelas coisas em que nem que fosse apenas uma vez na vida, tinha valido a pena! E valeu a pena! Obrigado Senhor.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Partida

Ajeitou o cabelo à miúda e limpou-lhe melhor os cantos da boca ainda alaranjados do sumo das duas únicas laranjas existentes na fruteira e que ela lhe tinha acabado de espremer.

Saiu de casa sem ter ninguém de quem se despedir. Partiu livre por fim. Partiu livre mas não ia feliz.

Meteram-se no carro e na auto-estrada uma vez mais. A pequena adormece e fica o rádio ligado para não deixar soar em murmúrio que fosse, os pensamentos dela. Os pensamentos… quem os controla? Demasiado perigosos para a hora e o local. E a paisagem negra só porque é noite, fica-lhe para trás vertiginosamente enquanto ela avança para o vazio.

Apresentou-se-lhes para o fim-de-semana com um ar desolado e desarranjado. Como condenado a caminho da forca. Tentou sorrir mas a sua tristeza mal disfarçada por um sorriso também triste não passou despercebida a ninguém.

Pouco falou e estava ali a cumprir a pena. A pena de estar viva e de ser mãe. Faz aquilo e isto e tudo o resto pela filha. Para ela é já tarde e os portões estão fechados e o caminho vedado. E as forças que lhe restam são já insuficientes porque ela baixou os braços e não os consegue nem quer levantar.

Sorrisos sarcásticos de quem se julga inatingível por certos dramas fizeram-na esforçar-se por conter as lágrimas que se acumularam em forma de nó difícil de desfazer na garganta. Incompreendida e só, foi como se sentiu. Uma imensa solidão*. E sentiu a dor, aquela que a acompanha há décadas e que ninguém compreende. Nem sequer ela…

Ana

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* Definições de “solidão” dadas por Chico Buarque numa entrevista a um jornalista:

Solidão não é a falta de gente para conversar, namorar, passear ou fazer sexo... Isto é carência!

Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar... Isto é saudade!

Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe, às vezes para realinhar os pensamentos... Isto é equilíbrio!

Solidão não é o claustro involuntário que o destino nos impõe compulsivamente... Isto é um princípio da natureza!

Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado... Isto é circunstância! Solidão é muito mais do que isto...

SOLIDÃO é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

UMA QUESTÃO DE DESMOTIVAÇÃO

Não sou uma jovem atleta para com a qual se tenha de ter determinados cuidados para evitar que venha a detestar a corrida poucos anos mais tarde. Sou apenas uma mulher a correr. Uma das poucas. Uma das que correm e têm também no seu companheiro (marido/namorado) um corredor assíduo. Mas há coisas que nos mudam a vontade, definitivamente ou não.

Sempre gostei de correr. Comecei com sete, oito anos, no Grupo Desportivo de Vialonga. Não sei se fiz duas épocas completas, pois a discriminação na atribuição de ténis novos fez com que a minha mãe me retirasse do clube. Fez bem. Lembro-me dos treinadores sempre me incentivarem e me congratularem mesmo quando ficava quase em última, mas pelos vistos, quem mandava não concordava que se apoiasse todos os atletas da mesma forma, mesmo tratando-se de crianças!

Voltei a correr com o meu irmão mais velho por volta dos meus 14 anos, de forma a emagrecer e melhorar a forma e o aspecto físico. Fui correndo com uma frequência muito irregular. Tudo dependia da vontade. E a vontade é quase tudo. Eu gostava mesmo de correr, de suar, esforçar-me e conseguir, sentir o ar na cara e o cheiro da terra molhada do pinhal, sempre explorando novos trilhos, ouvindo os pássaros, assustando os coelhos e outros bichos. Gostava de sair de casa com equipamentos inventados e enfrentar os olhares reprovadores das vizinhas. Era uma adolescente e ia correr muitas vezes sozinha. Isto aconteceu há 15 anos atrás.

Anos mais tarde, pelos meus vinte e tal anos, encontrei alguém, que é hoje meu marido, e comecei a correr com alguma regularidade, pois ele também gostava de correr.

E tudo começou por uma "Mini" da Ponte, em 1996. Uma brincadeira que adorámos! E a partir daí, começámos a participar em provas abertas a todos. E foi uma cavalgada que nunca mais parou.

Só que o ritmo se tornou alucinante. Como "obrigatório", tínhamos já o Troféu da Câmara Municipal de Oeiras - Corrida das Localidades, também o Troféu da Câmara Municipal de Almada, onde corria como veterana, apenas com 30 anos de idade, e por isso "tinha algumas hipóteses", dizia o meu marido, e todas aquelas provas populares que fazem parte da agenda de qualquer atleta de pelotão.

Todos os dias saio de casa para o emprego por volta das 7h45m e regresso às 20h00.
Tenho uma filha de 2 anos e meio. A lida da casa é sempre da mulher ( por muito que se fale de igualdade ). Treinos: sozinha, às 5:45 da manhã, em ruas escuras e desertas, e numa pista de atletismo, fechada a essa hora, onde aprendi a pular muros e a entrar clandestinamente, a ouvir as aves nocturnas e as mais madrugadoras, incomodadas por aquela intrusa de roupas com tiras reflectoras. Aos domingos: provas!


Quando pseudo treinadores conseguem transformar prazer em obrigação, quando o amor e o comportamento são postos em causa pelo facto de se correr ou não se correr, quando nos ameaçam se o nosso peso não baixar, ou se não treinamos, ou se estamos cansados, ou se simplesmente não correspondemos no treino ou na prova, se não cumprimos o programa de treinos estipulado, se há castigos e recompensas psicológicas em função do nosso comportamento na corrida, então começa-se a pensar no peso exagerado que a corrida tem na nossa vida e a meditar profundamente no que é afinal importante. Eu comecei a sentir que precisava de me libertar, de me sentir livre para não correr, para poder escolher. Precisava de parar. E parei...

Não sei quando nem se voltarei a correr. E eu gostava! Gostava mesmo! Mas hoje para mim, não correr é uma arma. É um desafio, uma luta, onde o que conta é a minha vontade. Hoje, deixei de ter vontade de correr e até talvez de viver, mas isso é outra história. Estou amarga e choro. Parei de correr e não sou ninguém...

Ana Pereira
2001

quarta-feira, 28 de março de 2007

Horácio

Os ténis estavam imóveis debaixo do alpendre, ainda cheios de areia, depois do último treino, na praia. Revigorante para o espírito na altura, mas ineficaz para o resto dos dias.

Os ténis estavam ali há mais de uma semana. Tal qual Horácio os tinha deixado.

Sem ele próprio perceber bem porquê assomou-se dele uma inércia, uma preguiça, um cansaço, um sentimento qualquer difícil de definir, que lhe tirou a vontade de correr e inclusive a vontade de viver.

Não era a primeira vez que Horácio passava por uma crise como esta. Talvez se devesse ao seu temperamento depressivo e derrotista. E após a morte da mulher, vendo-se sozinho com uma filha pequena, o Horácio ia buscar forças ao imaginário, e lá se ia mantendo na vida, lutando por gostar de viver, pela filha. Sempre pela filha!

O Horácio nunca se amou a si próprio, nunca amou a vida, e nunca soube viver! Tinha na corrida a ilusão de ser feliz.

Mas tantas vezes, o
cansaço, o desgaste de fazer de pai e mãe, derrotavam-no por completo. E o Horácio rendia-se àquela falta de vontade. Para tudo. Até para correr, que era das coisas que ele mais gostava. Aliás nas crises, ele deixava de fazer tudo o que gostava, adoptando uma atitude auto destrutiva, sem no entanto ter a energia suficiente para acabar com a vida de vez.

Encharcava-se em cerveja, empanturrava-se em batatas fritas e dava descanso aos sapatos de corrida.

Mas desta vez era diferente. Horácio sentia isso. Era como se não suportasse mais viver consigo mesmo. Sentia-se sufocar, no fundo de um poço cheio de lodo, onde o sol não chega e tudo é frio, viscoso, escuro, vazio e deprimente.

Uma manhã, após ter deixado a filha na casa da avó, como era costume em dias de corrida, o Horácio foi a três farmácias, e comprou em cada uma delas uma caixa de comprimidos para dormir.

Já tinha feito as contas e sabia com exactidão a dose máxima que o seu corpo suportaria. Ele ia ultrapassá-la largamente.

Cada caixa tinha trinta comprimidos, ele iria tomar noventa. Seria o suficiente para finalmente poder fechar os olhos com a certeza de não os voltar a abrir e encontrar de novo a sua vida de dor e sofrimento próprios de quem é incapaz de gostar de si mesmo.

E assim, o Horácio pôs termo à vida.

Nunca mais foi visto na estrada a correr. Não ficou cá para ver que alguns colegas sentiram a sua falta. Não ficou cá para ver o sol nascer e pôr-se todos os dias. Não ficou cá para ver a filha sorrir muitas vezes, e um dia acusá-lo de não a ter amado o suficiente para ter ficado e vê-la crescer.

Foi a única coisa que o Horácio lamentou. Deixar de ver a sua filha crescer e tornar-se mulher.

Mas a dor de viver do Horácio era a dor de acabar!

Por muito que gostássemos de o continuar a ver por aí a correr, a sorrir como se fosse feliz, a disfarçar o sofrimento junto da filha, não devemos esquecer que não conhecíamos a profundidade da dor que lhe ia na alma, que é das mais difíceis de suportar, e só nos devemos lembrar que hoje, o Horácio já não está entre nós, a sofrer!

Ana Pereira
2001

terça-feira, 20 de março de 2007

Amor no Asfalto

A um amor Impossível, mas que nem por isso deixou de existir

Hoje...recordo...

Conheceram-se numa corrida. Com aqueles fatos de treino dos clubes que tornam os atletas indistintos entre si.

Ele, o António, seco e magro, baixo, uma fraca figura, como se costuma dizer, mas que escondia afinal o corpo trabalhado de um corredor de fundo. Ela, a Marta, pele demasiado branca, descolorida, cabelo escuro preso por um lenço desbotado, quase rapariga sem graça, deformada pelo traje da ocasião.

Não causaram logo grande impressão um ao outro. Só quando os olhos se tocaram, ficaram então paralisados. Falaram com naturalidade, mas já não conseguiam desviar o olhar. Os olhos trocavam outras palavras entre si.

"Penetrante"; foi como descreveu mais tarde a Marta, o olhar daquele rapaz. Verdes, profundos e misteriosos como o mar, atravessaram o visível e o invisível e tocaram bem fundo na alma da Marta, como há muito tempo ninguém tocava. A Marta sentiu-se invadida, trespassada, despida, desarmada por aquele olhar, que ela não conseguia nem queria evitar.

Voltaram a encontrar-se mais vezes. Sempre nas corridas. Iam conversando enquanto corriam.

Ambos tinham uma filha da mesma idade, e por coincidência ambos estavam no 2º casamento.

A Marta era infeliz. O António também. Ambos amavam a corrida.

Conversavam, mas enquanto as palavras saíam, os olhos falavam de coisas completamente diferentes. Os olhos falavam de Amor , de desejo, de carinho, de paixão e de um sem fim de bem querer . Os olhos trocavam carícias e ternuras e tinham a certeza de ter ali a sua alma gémea. Os olhos falavam a linguagem da alma que só quem ama pode entender.

Apaixonaram-se perdidamente. No sonho, beijaram-se e abraçaram-se vezes sem conta , e amaram-se até à combustão dos corpos. Centenas de vezes, milhares de vezes!

Na Vida, partilharam tanta coisa, correram juntos à noite, ao pé do mar, só se ouvindo os seus próprios passos, as ondas, a respiração ofegante e os seus corações cantando alto um amor impossível. Correram à chuva, felizes como nunca tinham sido. Partilharam lágrimas, quando lesionada a Marta não podia correr. Suaram juntos nas corridas. Aplaudiram-se mutuamente, entre ajudaram-se tanta vez, e sonhavam que eram felizes assim.

Havia uma vida para eles, à sua espera. Eles só tinham de dar o primeiro passo. Mas não deram. Passaram-se meses, anos, e nunca falaram do amor que sentiam um pelo outro.

Nunca tiveram coragem para mudar as suas vidas. A Marta nunca soube como era o António vestido de fato e perfumado. Nunca soube o que era tirar-lhe a roupa devagarinho, peça a peça, sem pressa, desapertar-lhe a camisa, admirar-lhe o corpo tantas vezes sonhado e imaginado, afundar-se no mar dos seus olhos e amá-lo de verdade.

O António nunca soube como a Marta ficava linda de vestido preto, e só com um pequeno toque de pintura que logo a transformava numa princesa. Nunca soube o que era tirar-lhe as meias de seda e beijar-lhe cada centímetro de pele.

Nunca souberam o que era viver com alguém que se ama e que nos ama de verdade.

Passaram já vários anos. Eles continuam a correr e a encontrar-se nas corridas. As filhas são já meninas crescidas. Eles falam-se como dois velhos amigos, os rostos envelhecidos e cansados, pequenas rugas denunciando o sofrimento e a dor da vida de cada um, e no entanto os seus olhos continuam vivos como há tantos anos atrás, e continuam a falar a mesma linguagem, encarcerados e acorrentados às suas mentes cobardes, sem coragem para amar e viver de verdade.

Eles não sabem nem nunca saberão o quanto poderiam ter sido Felizes.

Ana Pereira
2000

domingo, 18 de março de 2007

Um domingo, por Mafalda Paixão, 9 anos

18/3/2007, Domingo, Março

Eu e a minha mãe fomos passear e vimos a baía da Amora Velha.
Aventurámo-nos por um caminho esquisito mas valeu a pena.

Vimos um barco afundado e ela tirou umas fotos. Lembra-me uma aventura dos Cinco.
Sentei-me numa rocha e comecei a atirar pedras à água. Sempre com a mãe a tirar-me fotografias.
Depois voltámos para trás. Saímos do carro e vimos umas pessoas a irem embora da “praia” e queríamos ver de onde elas tinham saído. Fazer de uma baía uma praia é estranho.

Começámos a andar. Vimos uma “mini-praia” e voltámos para o carro.

Depois fomos até a uma zona que tem cavalos. Vimos quatro cavalos. Vi um branco, dois castanhos e um preto. A minha mãe só viu os dois castanhos e um branco. Depois voltámos para casa.
Fim

por Mafalda Paixão, 9 anos

quarta-feira, 14 de março de 2007

Crescer a correr


Hoje vou falar-vos da minha amiga Paulinha. Por ela merecer, e por achar que este relato possa chegar a alguém que possa e queira fazer alguma coisa pelas crianças e pelo futuro do Atletismo.
A Paulinha tinha sete anos. Era uma menina muito tímida que preferia sempre passar despercebida em todas as situações.

Talvez por isso, a mãe inscreveu-a no clube da terra, na modalidade de Atletismo, mais concretamente corrida.

Três vezes por semana, a Paulinha chegava da escola já escuro, pois era Inverno e às 6 da tarde já era noite. Tirava a roupa da escola e vestia um fato de treino azul escuro com listas brancas de lado nas pernas e nos braços. Calçava uns ténis de pano (sabia-se lá naquela época e lugar o que eram sapatos de corrida!), punha por cima o seu velho sobretudo, e ia, timidamente, com uma dorzinha de barriga, provocada pelos nervos de ter de enfrentar novas situações e desafios, até ao campo da bola, onde decorriam os treinos.

Paulinha foi integrada num grupo da sua idade. Corriam a dois e dois, e ela depressa fez amigos novos. Assim, os dias de treino tornaram-se muito apetecíveis e aquela hora era aguardada com ansiedade. Paulinha ia contente e feliz para os treinos, que ela ainda hoje recorda com muita saudade e com um grande sorriso.

Nos treinos, ela brincava, convivia, e aí aprendeu a integrar-se, a ser sociável, a perder medos e a sua timidez excessiva. E é engraçado como, quando recordamos, os cheiros têm um papel fundamental. Hoje, ela ainda consegue sentir o cheiro daquele campo de terra molhado, dos balneários, do soalho da Casa do Povo (quando chovia treinavam aí). Sente ainda a alegria estonteante de quando iam treinar para o pinhal.

Os treinos eram um misto de brincadeira e de esforço. Ela recorda com prazer o cheiro do autocarro nos domingos de prova, o sabor do pão com manteiga que era engolido a custo pela secura da boca nessas manhãs. O equipamento azul forte. Lindo! A única vez que correu em Alvalade, o ambiente de festa, a mãe que a acompanhou, a desilusão dos pais da Vanda, que ficou desfeita por não ganhar, o que era incompreensível para a Paulinha que tinha ficado num lugar muito mais para trás e não se sentia assim.

Os treinadores (o Vává, e o Alfredo), que sempre a incentivaram, apoiaram e valorizaram os seus modestos resultados. Também os seus pais sempre a fizeram sentir-se uma vencedora, porque ela afinal dava sempre o seu melhor!

Após ultrapassar os seus receios pessoais e uma boa dose de timidez, a Paulinha sempre se sentiu bem a correr. Naqueles dois anos em que correu no clube, a Paulinha cresceu imenso! E não estou a falar do desenvolvimento normal de uma criança dos 7 aos 9 anos! Ela venceu medos, superou-se, aprendeu a relacionar-se e a respeitar os outros, a enfrentar situações menos agradáveis, a esforçar-se e a conseguir, a vencer e a ser vencida! Afinal, coisas tão importantes na corrida como na Vida!

Até que um dia, alguém teve de estragar (quase) tudo. A Direcção do clube decidiu dar ténis aos jovens atletas. Mas infelizmente achou que apenas os melhores deveriam ser abrangidos por tal dádiva! E todos da mesma idade, eis que surgem miúdos com ténis novos e os outros, os que corriam menos, mas que se calhar até se esforçavam mais, continuaram com os seus ténis velhos de pano!

Atingida pela injustiça, acharam por bem os pais da Paulinha tirá-la do clube. E assim a Paulinha deixou de correr e de desfrutar de tudo o que a corrida lhe dava. Felizmente, o prazer de correr, ninguém lhe conseguiu tirar, e hoje, quase veterana, ainda corre por essas estradas fora!

Os outros miúdos, os “melhores” correram por mais uns tempos, mas que eu saiba todos deixaram a corrida mesmo antes de entrarem na adolescência!

E o clube, esse, passado pouco tempo deixou de ter a modalidade de Atletismo, para se dedicar por completo ao Futebol. Também, que apoios financeiros ou outros o clube teve ou deixou de ter para manter essa secção, verdade seja dita, não faço qualquer ideia!

Certo é que, o que o clube faz hoje, passados 25 anos, pela comunidade e pelas crianças, que são o futuro, da terra, do atletismo, e do Mundo, é...nada!
Ana Pereira
2002

segunda-feira, 12 de março de 2007

Urgente

Vi-te.
No meio da multidão, vi-te. Engano impossível. Eras tu!
E o Mundo parou.
À nossa volta as vozes emudeceram, a banda calou-se, e o som fez-se silêncio para apenas deixar ouvir os nossos corações e ficamos sozinhos na praça, de olhos cravados, colados, pegados, um no outro, rodeados por ninguém.

Só nós.
Sorriste e acenaste com a cabeça, dando-me o sinal.
Tu és o tal.
E agora é urgente!

É urgente ver-te
É urgente ouvir-te
É urgente abraçar-te
É urgente despir-te
Com os olhos e com as mãos
Libertar-te da roupa

E das máscaras.
É urgente tocar-te
E sentir-te despido
É urgente ter-te
É urgente amar-te

É urgente...




Março 2007

sábado, 10 de março de 2007

O Rapaz do Anúncio

Mariana estava sentada ao sol na praia. Olhava o mar distante, com os seus olhos castanhos e tristes. O Sol não tardaria a pôr-se e ela estava com a sua amiga Carolina que esperava uns amigos desde a manhã.

Apesar do dia estar no fim, Carolina, com a teimosia da adolescência estava segura que eles viriam, por isso não arredava pé da praia.

Para Mariana que nem os conhecia, precocemente desiludida pela vida, incrédula diante do Amor, era-lhe completamente indiferente se eles viessem ou não.

Olhava o mar salgado como os seus olhos e sentia o prazer do sol morninho no seu corpo de menina apesar de ter quase 30 anos. Corpo bronzeado na sua tanga preta, Mariana era uma linda mulher, olhando o mar, tristemente como se o mar lhe pudesse dar algum alívio para a sua dor de viver.

Um dos poucos prazeres da vida era correr. Quando corria, Mariana sentia-se livre, em comunhão consigo mesma e com a Natureza. Mariana era feliz quando corria! Era ela própria, sem artifícios, sem ter de agradar a ninguém, sem fingir.

A corrida dáva-lhe vida e força, e ajudava-a a manter-se viva. Mas a falta de companhia e a solidão por vezes faziam com que desistisse, se isolasse ainda mais, e deixasse de correr.

"Eles aí estão!"- exclamou eufórica Carolina na alegria dos seus 16 anos.

Mariana vira-se e... é surpreendida pela beleza de um dos rapazes.

Alto, corpo esbelto, musculado e bronzeado, cabelo encaracolado preto, olhos castanhos meigos e profundos, e uns lábios grossos, que Mariana desejou de imediato beijar. Ela nunca tinha sentido nada parecido por alguém, assim, no primeiro instante!

O Tomás era de facto um rapaz de capa de revista, corpo de modelo, peito e abdominais esculturais, jovem, estouvado, lindo de morrer!

Mariana desejou-o para si. Tantos maus passos dados no seu passado, relacionamentos cujo único fruto foi a dor e a desilusão, sempre com homens mais velhos, em que ela procurava o Amor e a protecção de um pai que não teve.

E agora apresentava-se-lhe assim a Juventude em pessoa! Tomás só tinha 20 anos, e Mariana quis agarrar essa juventude que ela nunca tinha tido oportunidade de viver.

Apaixonaram-se e viveram loucamente meses de alegria e fantasia. Mariana estava a viver a sua própria juventude, embora tardiamente.

Viveu então intensamente, dançou até ser manhã, viu o sol nascer sentada no telhado de uma casa velha, deitou-se no chão numa estação de comboios qualquer a altas horas da noite, e abraçada ao seu Tomás, pediu desejos irrealizáveis às estrelas, e mesmo assim acreditou neles, alheios às poucas pessoas que passavam. Fez amor em locais públicos. Dentro de carros estacionados no meio da cidade, sempre arriscando, como se o risco tornasse tudo mais louco, mais alucinante e mais intenso! Foram meses loucos!

Como o Tomás não era em nada adepto da corrida, Mariana quase se esqueceu da sua vontade de correr nesse período.

Mas com a sua maturidade sabia que aquela viagem alucinante não podia durar para sempre, às vezes falava de coisas sérias, duras, que a vida também tem, e que são afinal o dia-a-dia de todas as pessoas.

Mariana sonhava em assentar com aquele rapaz, e quem sabe, até casar e ter filhos. Mas o Tomás recusava-se a ouvir. Ele queria que a sua vida fosse como um anúncio televisivo a um refrigerante qualquer: pessoas jovens, belas, enérgicas, vivas, intensas, loucas, felizes, sempre! E a sua vida era mesmo isso!

A partir desse dia, o Tomás ficou conhecido como o "rapaz do anúncio".

Mariana começou a fartar-se daquela vida. Tinha outras pretensões. Começou a pensar nela, na sua vontade, no que ela queria da vida. E acabaram tudo!

Num momento de saudade, ele telefona-lhe e pergunta se ela queria correr com ele, na praia, ele nunca se tinha interessado pela corrida, ou pelos interesses dela! Mariana responde-lhe que sim, queria correr com ele, mas queria correr com ele da vida dela para fora!!!

Poucas mais vezes se viram. Ainda se falaram durante uns tempos. Hoje, Mariana está casada, é mãe de um lindo menino, e pratica atletismo, assim como o seu marido.O Tomás não chegou a casar. Tem uma filha que está com a mãe, faz parte de um grupo de "strip-tease" e anda a ganhar dinheiro aí pelas discotecas.

Ana Pereira
2001