Histórias, algumas reais

quarta-feira, 28 de março de 2007

Horácio

Os ténis estavam imóveis debaixo do alpendre, ainda cheios de areia, depois do último treino, na praia. Revigorante para o espírito na altura, mas ineficaz para o resto dos dias.

Os ténis estavam ali há mais de uma semana. Tal qual Horácio os tinha deixado.

Sem ele próprio perceber bem porquê assomou-se dele uma inércia, uma preguiça, um cansaço, um sentimento qualquer difícil de definir, que lhe tirou a vontade de correr e inclusive a vontade de viver.

Não era a primeira vez que Horácio passava por uma crise como esta. Talvez se devesse ao seu temperamento depressivo e derrotista. E após a morte da mulher, vendo-se sozinho com uma filha pequena, o Horácio ia buscar forças ao imaginário, e lá se ia mantendo na vida, lutando por gostar de viver, pela filha. Sempre pela filha!

O Horácio nunca se amou a si próprio, nunca amou a vida, e nunca soube viver! Tinha na corrida a ilusão de ser feliz.

Mas tantas vezes, o
cansaço, o desgaste de fazer de pai e mãe, derrotavam-no por completo. E o Horácio rendia-se àquela falta de vontade. Para tudo. Até para correr, que era das coisas que ele mais gostava. Aliás nas crises, ele deixava de fazer tudo o que gostava, adoptando uma atitude auto destrutiva, sem no entanto ter a energia suficiente para acabar com a vida de vez.

Encharcava-se em cerveja, empanturrava-se em batatas fritas e dava descanso aos sapatos de corrida.

Mas desta vez era diferente. Horácio sentia isso. Era como se não suportasse mais viver consigo mesmo. Sentia-se sufocar, no fundo de um poço cheio de lodo, onde o sol não chega e tudo é frio, viscoso, escuro, vazio e deprimente.

Uma manhã, após ter deixado a filha na casa da avó, como era costume em dias de corrida, o Horácio foi a três farmácias, e comprou em cada uma delas uma caixa de comprimidos para dormir.

Já tinha feito as contas e sabia com exactidão a dose máxima que o seu corpo suportaria. Ele ia ultrapassá-la largamente.

Cada caixa tinha trinta comprimidos, ele iria tomar noventa. Seria o suficiente para finalmente poder fechar os olhos com a certeza de não os voltar a abrir e encontrar de novo a sua vida de dor e sofrimento próprios de quem é incapaz de gostar de si mesmo.

E assim, o Horácio pôs termo à vida.

Nunca mais foi visto na estrada a correr. Não ficou cá para ver que alguns colegas sentiram a sua falta. Não ficou cá para ver o sol nascer e pôr-se todos os dias. Não ficou cá para ver a filha sorrir muitas vezes, e um dia acusá-lo de não a ter amado o suficiente para ter ficado e vê-la crescer.

Foi a única coisa que o Horácio lamentou. Deixar de ver a sua filha crescer e tornar-se mulher.

Mas a dor de viver do Horácio era a dor de acabar!

Por muito que gostássemos de o continuar a ver por aí a correr, a sorrir como se fosse feliz, a disfarçar o sofrimento junto da filha, não devemos esquecer que não conhecíamos a profundidade da dor que lhe ia na alma, que é das mais difíceis de suportar, e só nos devemos lembrar que hoje, o Horácio já não está entre nós, a sofrer!

Ana Pereira
2001

terça-feira, 20 de março de 2007

Amor no Asfalto

A um amor Impossível, mas que nem por isso deixou de existir

Hoje...recordo...

Conheceram-se numa corrida. Com aqueles fatos de treino dos clubes que tornam os atletas indistintos entre si.

Ele, o António, seco e magro, baixo, uma fraca figura, como se costuma dizer, mas que escondia afinal o corpo trabalhado de um corredor de fundo. Ela, a Marta, pele demasiado branca, descolorida, cabelo escuro preso por um lenço desbotado, quase rapariga sem graça, deformada pelo traje da ocasião.

Não causaram logo grande impressão um ao outro. Só quando os olhos se tocaram, ficaram então paralisados. Falaram com naturalidade, mas já não conseguiam desviar o olhar. Os olhos trocavam outras palavras entre si.

"Penetrante"; foi como descreveu mais tarde a Marta, o olhar daquele rapaz. Verdes, profundos e misteriosos como o mar, atravessaram o visível e o invisível e tocaram bem fundo na alma da Marta, como há muito tempo ninguém tocava. A Marta sentiu-se invadida, trespassada, despida, desarmada por aquele olhar, que ela não conseguia nem queria evitar.

Voltaram a encontrar-se mais vezes. Sempre nas corridas. Iam conversando enquanto corriam.

Ambos tinham uma filha da mesma idade, e por coincidência ambos estavam no 2º casamento.

A Marta era infeliz. O António também. Ambos amavam a corrida.

Conversavam, mas enquanto as palavras saíam, os olhos falavam de coisas completamente diferentes. Os olhos falavam de Amor , de desejo, de carinho, de paixão e de um sem fim de bem querer . Os olhos trocavam carícias e ternuras e tinham a certeza de ter ali a sua alma gémea. Os olhos falavam a linguagem da alma que só quem ama pode entender.

Apaixonaram-se perdidamente. No sonho, beijaram-se e abraçaram-se vezes sem conta , e amaram-se até à combustão dos corpos. Centenas de vezes, milhares de vezes!

Na Vida, partilharam tanta coisa, correram juntos à noite, ao pé do mar, só se ouvindo os seus próprios passos, as ondas, a respiração ofegante e os seus corações cantando alto um amor impossível. Correram à chuva, felizes como nunca tinham sido. Partilharam lágrimas, quando lesionada a Marta não podia correr. Suaram juntos nas corridas. Aplaudiram-se mutuamente, entre ajudaram-se tanta vez, e sonhavam que eram felizes assim.

Havia uma vida para eles, à sua espera. Eles só tinham de dar o primeiro passo. Mas não deram. Passaram-se meses, anos, e nunca falaram do amor que sentiam um pelo outro.

Nunca tiveram coragem para mudar as suas vidas. A Marta nunca soube como era o António vestido de fato e perfumado. Nunca soube o que era tirar-lhe a roupa devagarinho, peça a peça, sem pressa, desapertar-lhe a camisa, admirar-lhe o corpo tantas vezes sonhado e imaginado, afundar-se no mar dos seus olhos e amá-lo de verdade.

O António nunca soube como a Marta ficava linda de vestido preto, e só com um pequeno toque de pintura que logo a transformava numa princesa. Nunca soube o que era tirar-lhe as meias de seda e beijar-lhe cada centímetro de pele.

Nunca souberam o que era viver com alguém que se ama e que nos ama de verdade.

Passaram já vários anos. Eles continuam a correr e a encontrar-se nas corridas. As filhas são já meninas crescidas. Eles falam-se como dois velhos amigos, os rostos envelhecidos e cansados, pequenas rugas denunciando o sofrimento e a dor da vida de cada um, e no entanto os seus olhos continuam vivos como há tantos anos atrás, e continuam a falar a mesma linguagem, encarcerados e acorrentados às suas mentes cobardes, sem coragem para amar e viver de verdade.

Eles não sabem nem nunca saberão o quanto poderiam ter sido Felizes.

Ana Pereira
2000

domingo, 18 de março de 2007

Um domingo, por Mafalda Paixão, 9 anos

18/3/2007, Domingo, Março

Eu e a minha mãe fomos passear e vimos a baía da Amora Velha.
Aventurámo-nos por um caminho esquisito mas valeu a pena.

Vimos um barco afundado e ela tirou umas fotos. Lembra-me uma aventura dos Cinco.
Sentei-me numa rocha e comecei a atirar pedras à água. Sempre com a mãe a tirar-me fotografias.
Depois voltámos para trás. Saímos do carro e vimos umas pessoas a irem embora da “praia” e queríamos ver de onde elas tinham saído. Fazer de uma baía uma praia é estranho.

Começámos a andar. Vimos uma “mini-praia” e voltámos para o carro.

Depois fomos até a uma zona que tem cavalos. Vimos quatro cavalos. Vi um branco, dois castanhos e um preto. A minha mãe só viu os dois castanhos e um branco. Depois voltámos para casa.
Fim

por Mafalda Paixão, 9 anos

quarta-feira, 14 de março de 2007

Crescer a correr


Hoje vou falar-vos da minha amiga Paulinha. Por ela merecer, e por achar que este relato possa chegar a alguém que possa e queira fazer alguma coisa pelas crianças e pelo futuro do Atletismo.
A Paulinha tinha sete anos. Era uma menina muito tímida que preferia sempre passar despercebida em todas as situações.

Talvez por isso, a mãe inscreveu-a no clube da terra, na modalidade de Atletismo, mais concretamente corrida.

Três vezes por semana, a Paulinha chegava da escola já escuro, pois era Inverno e às 6 da tarde já era noite. Tirava a roupa da escola e vestia um fato de treino azul escuro com listas brancas de lado nas pernas e nos braços. Calçava uns ténis de pano (sabia-se lá naquela época e lugar o que eram sapatos de corrida!), punha por cima o seu velho sobretudo, e ia, timidamente, com uma dorzinha de barriga, provocada pelos nervos de ter de enfrentar novas situações e desafios, até ao campo da bola, onde decorriam os treinos.

Paulinha foi integrada num grupo da sua idade. Corriam a dois e dois, e ela depressa fez amigos novos. Assim, os dias de treino tornaram-se muito apetecíveis e aquela hora era aguardada com ansiedade. Paulinha ia contente e feliz para os treinos, que ela ainda hoje recorda com muita saudade e com um grande sorriso.

Nos treinos, ela brincava, convivia, e aí aprendeu a integrar-se, a ser sociável, a perder medos e a sua timidez excessiva. E é engraçado como, quando recordamos, os cheiros têm um papel fundamental. Hoje, ela ainda consegue sentir o cheiro daquele campo de terra molhado, dos balneários, do soalho da Casa do Povo (quando chovia treinavam aí). Sente ainda a alegria estonteante de quando iam treinar para o pinhal.

Os treinos eram um misto de brincadeira e de esforço. Ela recorda com prazer o cheiro do autocarro nos domingos de prova, o sabor do pão com manteiga que era engolido a custo pela secura da boca nessas manhãs. O equipamento azul forte. Lindo! A única vez que correu em Alvalade, o ambiente de festa, a mãe que a acompanhou, a desilusão dos pais da Vanda, que ficou desfeita por não ganhar, o que era incompreensível para a Paulinha que tinha ficado num lugar muito mais para trás e não se sentia assim.

Os treinadores (o Vává, e o Alfredo), que sempre a incentivaram, apoiaram e valorizaram os seus modestos resultados. Também os seus pais sempre a fizeram sentir-se uma vencedora, porque ela afinal dava sempre o seu melhor!

Após ultrapassar os seus receios pessoais e uma boa dose de timidez, a Paulinha sempre se sentiu bem a correr. Naqueles dois anos em que correu no clube, a Paulinha cresceu imenso! E não estou a falar do desenvolvimento normal de uma criança dos 7 aos 9 anos! Ela venceu medos, superou-se, aprendeu a relacionar-se e a respeitar os outros, a enfrentar situações menos agradáveis, a esforçar-se e a conseguir, a vencer e a ser vencida! Afinal, coisas tão importantes na corrida como na Vida!

Até que um dia, alguém teve de estragar (quase) tudo. A Direcção do clube decidiu dar ténis aos jovens atletas. Mas infelizmente achou que apenas os melhores deveriam ser abrangidos por tal dádiva! E todos da mesma idade, eis que surgem miúdos com ténis novos e os outros, os que corriam menos, mas que se calhar até se esforçavam mais, continuaram com os seus ténis velhos de pano!

Atingida pela injustiça, acharam por bem os pais da Paulinha tirá-la do clube. E assim a Paulinha deixou de correr e de desfrutar de tudo o que a corrida lhe dava. Felizmente, o prazer de correr, ninguém lhe conseguiu tirar, e hoje, quase veterana, ainda corre por essas estradas fora!

Os outros miúdos, os “melhores” correram por mais uns tempos, mas que eu saiba todos deixaram a corrida mesmo antes de entrarem na adolescência!

E o clube, esse, passado pouco tempo deixou de ter a modalidade de Atletismo, para se dedicar por completo ao Futebol. Também, que apoios financeiros ou outros o clube teve ou deixou de ter para manter essa secção, verdade seja dita, não faço qualquer ideia!

Certo é que, o que o clube faz hoje, passados 25 anos, pela comunidade e pelas crianças, que são o futuro, da terra, do atletismo, e do Mundo, é...nada!
Ana Pereira
2002

segunda-feira, 12 de março de 2007

Urgente

Vi-te.
No meio da multidão, vi-te. Engano impossível. Eras tu!
E o Mundo parou.
À nossa volta as vozes emudeceram, a banda calou-se, e o som fez-se silêncio para apenas deixar ouvir os nossos corações e ficamos sozinhos na praça, de olhos cravados, colados, pegados, um no outro, rodeados por ninguém.

Só nós.
Sorriste e acenaste com a cabeça, dando-me o sinal.
Tu és o tal.
E agora é urgente!

É urgente ver-te
É urgente ouvir-te
É urgente abraçar-te
É urgente despir-te
Com os olhos e com as mãos
Libertar-te da roupa

E das máscaras.
É urgente tocar-te
E sentir-te despido
É urgente ter-te
É urgente amar-te

É urgente...




Março 2007

sábado, 10 de março de 2007

O Rapaz do Anúncio

Mariana estava sentada ao sol na praia. Olhava o mar distante, com os seus olhos castanhos e tristes. O Sol não tardaria a pôr-se e ela estava com a sua amiga Carolina que esperava uns amigos desde a manhã.

Apesar do dia estar no fim, Carolina, com a teimosia da adolescência estava segura que eles viriam, por isso não arredava pé da praia.

Para Mariana que nem os conhecia, precocemente desiludida pela vida, incrédula diante do Amor, era-lhe completamente indiferente se eles viessem ou não.

Olhava o mar salgado como os seus olhos e sentia o prazer do sol morninho no seu corpo de menina apesar de ter quase 30 anos. Corpo bronzeado na sua tanga preta, Mariana era uma linda mulher, olhando o mar, tristemente como se o mar lhe pudesse dar algum alívio para a sua dor de viver.

Um dos poucos prazeres da vida era correr. Quando corria, Mariana sentia-se livre, em comunhão consigo mesma e com a Natureza. Mariana era feliz quando corria! Era ela própria, sem artifícios, sem ter de agradar a ninguém, sem fingir.

A corrida dáva-lhe vida e força, e ajudava-a a manter-se viva. Mas a falta de companhia e a solidão por vezes faziam com que desistisse, se isolasse ainda mais, e deixasse de correr.

"Eles aí estão!"- exclamou eufórica Carolina na alegria dos seus 16 anos.

Mariana vira-se e... é surpreendida pela beleza de um dos rapazes.

Alto, corpo esbelto, musculado e bronzeado, cabelo encaracolado preto, olhos castanhos meigos e profundos, e uns lábios grossos, que Mariana desejou de imediato beijar. Ela nunca tinha sentido nada parecido por alguém, assim, no primeiro instante!

O Tomás era de facto um rapaz de capa de revista, corpo de modelo, peito e abdominais esculturais, jovem, estouvado, lindo de morrer!

Mariana desejou-o para si. Tantos maus passos dados no seu passado, relacionamentos cujo único fruto foi a dor e a desilusão, sempre com homens mais velhos, em que ela procurava o Amor e a protecção de um pai que não teve.

E agora apresentava-se-lhe assim a Juventude em pessoa! Tomás só tinha 20 anos, e Mariana quis agarrar essa juventude que ela nunca tinha tido oportunidade de viver.

Apaixonaram-se e viveram loucamente meses de alegria e fantasia. Mariana estava a viver a sua própria juventude, embora tardiamente.

Viveu então intensamente, dançou até ser manhã, viu o sol nascer sentada no telhado de uma casa velha, deitou-se no chão numa estação de comboios qualquer a altas horas da noite, e abraçada ao seu Tomás, pediu desejos irrealizáveis às estrelas, e mesmo assim acreditou neles, alheios às poucas pessoas que passavam. Fez amor em locais públicos. Dentro de carros estacionados no meio da cidade, sempre arriscando, como se o risco tornasse tudo mais louco, mais alucinante e mais intenso! Foram meses loucos!

Como o Tomás não era em nada adepto da corrida, Mariana quase se esqueceu da sua vontade de correr nesse período.

Mas com a sua maturidade sabia que aquela viagem alucinante não podia durar para sempre, às vezes falava de coisas sérias, duras, que a vida também tem, e que são afinal o dia-a-dia de todas as pessoas.

Mariana sonhava em assentar com aquele rapaz, e quem sabe, até casar e ter filhos. Mas o Tomás recusava-se a ouvir. Ele queria que a sua vida fosse como um anúncio televisivo a um refrigerante qualquer: pessoas jovens, belas, enérgicas, vivas, intensas, loucas, felizes, sempre! E a sua vida era mesmo isso!

A partir desse dia, o Tomás ficou conhecido como o "rapaz do anúncio".

Mariana começou a fartar-se daquela vida. Tinha outras pretensões. Começou a pensar nela, na sua vontade, no que ela queria da vida. E acabaram tudo!

Num momento de saudade, ele telefona-lhe e pergunta se ela queria correr com ele, na praia, ele nunca se tinha interessado pela corrida, ou pelos interesses dela! Mariana responde-lhe que sim, queria correr com ele, mas queria correr com ele da vida dela para fora!!!

Poucas mais vezes se viram. Ainda se falaram durante uns tempos. Hoje, Mariana está casada, é mãe de um lindo menino, e pratica atletismo, assim como o seu marido.O Tomás não chegou a casar. Tem uma filha que está com a mãe, faz parte de um grupo de "strip-tease" e anda a ganhar dinheiro aí pelas discotecas.

Ana Pereira
2001