As Crónicas da Ana

Histórias, algumas reais

domingo, 30 de março de 2014

O exemplo do Melro

TEXTO ESCRITO EM 1999:

O Exemplo do Melro



Domingo, 14 de Fevereiro de 1999. Ar cansado, mas feliz por ter concluído (1h 49m) os 20 km de Cascais. O Melro, 63 anos feitos, festejou o 1º ano da prática da corrida, pois a sua estreia aconteceu precisamente na "Rapidinha" do ano passado.

Nunca tinha corrido na vida. Amigo dos copos, columbófilo por herança, uma voltinha de bicicleta de longe em longe e nada mais!

O bichinho da corrida nasceu quando começou a acompanhar o genro e a filha nas provas de estrada. A acompanhar é como quem diz: a ir ver, a aplaudir e a admirar este ambiente muito especial.

O Melro, observador e irrequieto como a ave, reparou nos "velhotes" alguns com mais primaveras que ele, que corriam nessas provas e começou a deixar escapar frases como:

"eu se calhar também era capaz...ou não?"

A filha nunca acreditou que o Melro pudesse correr, com a sua barriguinha típica de bebedor, e só lhe respondia que para fazer aquilo era preciso muito treino e que lá por ele ver aqueles velhotes com mais de 70 anos a participar, não seria fácil para ele imitá-los. O genro dizia que tinha de começar devagar.

O Melro vem um dia dizer à filha que tinha estado a treinar no quintal ( que nem 50 m tem de comprimento ). Havia no Melro uma vontade de correr mas ao mesmo tempo uma timidez e uma indecisão de dizer: "Eu quero, sou capaz e vou começar". Precisava de um empurrão.

No Natal de 1997, o genro e a filha ofereceram-lhe uns sapatos de corrida. E logo começou o Melro, com um programa de treinos feito pelo genro, que ele cumpria à risca.

A exigência da ida ao médico foi o 1º obstáculo a vencer. O Melro achava que não era preciso.

Mas o "treinador" ameaçou que sem ida ao médico não havia mais treinos para ninguém. E lá foi o Melro ao médico. Felizmente a máquina estava boa.

O 2º obstáculo foi o aquecimento. Não foi fácil convencê-lo. Ele queria era calçar os ténis e sair para correr. Levou algum tempo a perceber a sua importância.

O treino de início, era, um minuto a correr, um minuto a andar. Depois, dois minutos a correr e um a andar, e assim progressivamente, lá estava o Melro todo nervoso mas entusiasmado na linha de partida da Rapidinha de Cascais, em Fevereiro de 1998.

Fez a prova toda acompanhado pela filha. Seguiu-se a Mini-Maratona da ponte, e desde então nunca mais parou. Já lá vão 27 provas num total de 260 km percorridos (fora os 2 a 3 treinos semanais), onze quilos perdidos, muitos copos por beber (não todos) e, o mais importante, um rejuvenescimento físico e mental que o fez encarar esta nova fase da vida (recém reformado) duma forma viva e entusiasmante.

Este relato não só demonstra que nunca é tarde para começar, como também a importância das Minis e Rapidinhas na iniciação de muitos corredores (também a filha do Melro se iniciou numa Mini da Ponte), contrariando a opinião de muitos atletas, que dizem que estas provas só servem para atrapalhar os que correm "a sério".

Ana Pereira
1999
 

sábado, 5 de março de 2011

Não nos cortem as pernas - Almada

Pista Municipal de Almada

" Não nos cortem as pernas "

Maria Augusta é mãe e dona de casa no tempo que lhe resta depois das oito horas de trabalho no escritório onde ganha o pão. No Outono, já chega a casa de noite, e mesmo assim, equipa-se e vai dar a sua corridinha diária. Só ela sabe o que a corrida lhe faz bem! Contra todas as dificuldades, aquela horinha a correr dá-lhe a força necessária para enfrentar a sua vida difícil.

Treina na estrada a Maria Augusta, como na estrada faz Provas, desde a Milha à Maratona. Mas gosta também de treinar na pista, a rolar na relva, ou a fazer series, cronometrando os tempos (treino específico, tantas vezes referido no folheto Informativo da Pista Municipal de Atletismo de Almada!).

Agora já é quase Inverno, ela sai de casa e em cinco minutos de trote está na pista da Sobreda, que lhe oferece segurança, iluminação, e todas as condições para a prática da corrida, quer sejam series, ou um simples jogging na relva.

Mas a partir de 30 de Setembro de 2002, a Pista da Sobreda interditou a entrada a atletas como a Maria Augusta! Agora é só para atletas acreditados (?). E a Maria Augusta não é uma atleta acreditada!

Assim, à hora em que lhe é possível treinar, não pode entrar na pista! Mesmo pertencendo a um clube do concelho de Almada, participando no Troféu desse concelho, nem ela, nem nenhum dos atletas desse clube pode treinar na pista à hora nobre! Interessante é ser negada a autorização a atletas desse clube, e ter sido dito ao seu dirigente, que, se o clube tinha atletas que participavam em provas de estrada, então que fossem treinar para a estrada!

E é para a estrada que Maria Augusta vai correr das oito às nove da noite, debatendo-se e confrontando-se com o transito e a poluição, com a escuridão e o piso traiçoeiro, com os cães, e com toda a insegurança, arriscando a própria integridade física como mulher que é!

O que ganha Almada, o Atletismo, e a corrida com esta medida?Alguém que me responda, que eu não encontro resposta. Mas que seja alguém que sue a camisola como eu, que treine diariamente àquela hora na pista e que nunca tenha assistido a atletas como a Maria Augusta a dificultar o treino dos atletas de alta competição! A resposta dos senhores de gravata para quem estar no pelouro do desporto significa pouco mais que um cargo, um ordenado e outras regalias, estará seguramente bem longe da realidade.

Muito mais razoável para evitar a utilização da pista por aqueles que vão para lá “brincar”, seria, por exemplo, cobrar um valor à entrada. Razoável e sensato, porque nós gastamos a pista, a relva, a água, o ar que respiramos! Façam isso, ou qualquer outra coisa, mas por favor, não nos cortem as pernas!

Ai Almada, Almada, quem é que tens à frente que não sabe amar o Desporto?


Ana Pereira, 2002

Maria Sem Frio Nem Casa





quarta-feira, 23 de junho de 2010

A Mãe e as Regras


Anda há uns dias a filha da mãe a pedir para ir “treinar” para a pista. A miúda comentou que se há seis pistas numa pista, então o que vai na pista de dentro corre menos! A Mãe lá lhe explicou o pouco que sabe: as partidas são dadas em linhas diferentes. A que está mais dentro parte mais atrás, a da pista seguinte um bocadinho mais à frente, a da seguinte ainda mais à frente e por aí fora, de forma que corram todas a mesma exacta distância. A miúda deu-se por convencida mas pediu à mãe para a levar a treinar numa pista.

A Mãe nunca insistiu para a miúda correr, e arrelia-se tanto quanto a pequena quando os colegas de equipa só sabem perguntar à miúda: “Então? Vais correr? Tens de começar a correr como a Mãe
!”, mas se a iniciativa de querer ir treinar para a pista parte da própria miúda, e se surge algum interesse pelo atletismo, então, a mãe envaidece-se toda e não vai perder a oportunidade de tentar mostrar à miúda o prazer e benefícios que pode tirar da corrida. Ia lá a Mãe perder uma oportunidade destas!

Combinaram para um fim de semana e mesmo se chovesse, o “treino” ia fazer-se. Assim, num sábado de manhã dirigem-se à pista de atletismo da Câmara Municipal de Almada. Pista aberta, no relvado está a decorrer um jogo de futebol de crianças.

A pista é rodeada por relva, e circunda ela um belíssimo relvado que não é mais que um campo de Rugby.

A Mãe
faz uns ligeiros alongamentos, e começa a correr na pista com a criança, pois a relva do lado de fora da pista está alagada. Tinha chovido toda a noite e só não chovia naquele momento por sorte.

“- Vamos pela pista do lado de fora, a de dentro é para os mais rápidos.”
“- Então tu vais para essa e eu fico na pista de fora! Ando mais devagar que tu mãe!” – a miúda está entusiasmada! Vamos devagar e a mãe vai-lhe dizendo que não interessa ir muito depressa para não conseguirmos correr mais daqui a nada. Interessa sim ir devagarinho e aguentar mais tempo.

“-Vamos tentar dar uma volta completa, ou talvez duas, que achas?”- pergunta a mãe.
“-Duas! Assim vamos muito devagarinho! Eu aguentava muito mais depressa!”
“- Vamos com calma, devagarinho, assim”

Fazem apenas 100 metros até encontrarem alguém que lhes diz:

“-Não podem andar aqui a correr! Há competições, e dizem as regras que quando há competições não se pode andar aqui a correr!”

A Mãe pára estupefacta. Regras? Claro que há regras! Mas a Mãe e a miúda incomodarão a competição que decorre? Passam-lhe imensas coisas pela cabeça, fica calada, e o senhor diz:

“-Diga minha senhora!”
E a Mãe diz: “Não vale a pena!”
“-Diga lá minha senhora!”
“- Acha que eu e a miúda estamos a incomodar a competição?”
“-Não é isso! São as regras! Alguma bola que sai do campo e vos atinge, já viu?! São as regras! Alguma coisa, escreva a reclamar para a Câmara! Eu só cumpro as regras!”

Era o que a mãe dizia. Não vale a pena! Está tudo dentro das regras! Ao sábado de manhã queremos ir correr com a nossa filha de 8 anos, dentro de uma pista de atletismo e as regras não nos deixam lá Correr porque há uma competição de Futebol!

As regras! Fantásticas as regras! Estaria tudo fantasticamente perfeito se aquilo não fosse uma Pista de Atletismo! Que nem campo de futebol tem! É de rugby! Mas então, é um jogo de futebol! As regras dizem que se alguém quiser jogar futebol dentro da pista, os que queiram correr que vão para a estrada ou para outro lado qualquer! Correr ali? Não!!! Está-se a jogar Futebol!!!!

É preciso dizer mais alguma coisa? Claro que não, estamos todos a cumprir as regras! Fantástico este mundo do Atletismo em Portugal.

E fantástica é a Câmara Municipal de Almada que dita as regras! E na sua Pista de Atletismo joga-se Futebol neste sábado de manhã!

A Mãe
sai da pista. Tem na cabeça a maior revolta mas não o denuncia! As regras estão a ser cumpridas! Vai com a miúda para outro local, onde igualmente correm.

Aproveitam para colher folhas de árvores e arbustos para o herbário que a miúda está a fazer. A Mãe mostra o que é correr no meio da natureza, o que de longe até prefere! Enquanto correm, observam as plantas, os bichinhos, e a mãe até lhe chama a atenção para ela sentir como é bom pisar aquele chão macio de terra molhada, onde teimosamente vêm cair umas gotinhas de chuva. Mas a miúda tinha mostrado interesse na pista, em correr lá, em conhecer o local de onde se parte, onde se chega, etc. Ela tinha mostrado interesse…e o que lhe fizeram? Tem 8 anos apenas.

E assim vai o nosso Atletismo.

A Mãe, 16.02.2006

quinta-feira, 5 de março de 2009

Dipsy

Na 1ª vez que corri, fiz 50 minutos. Um exagero para a minha condição física, idade e características individuais.

Um erro consequente da minha inexperiência, e indo contra o conselho técnico dos meus amigos que já corriam há uns anos. Acabei o treino a coxear.
No dia seguinte mal podia andar, mas ainda o pior foi ter gasto quase por completo a sola dos...pés! Sim dos pés! É que achei que devia correr descalço. Adepto da vida saudável e amigo da natureza, achei que o mais natural era correr descalço.

Também até hoje ainda não encontrei umas sapatilhas que se adaptassem às minhas extremidades (pés). Por isso continuo a correr descalço. Com a continuação acaba-se por formar um calo bastante resistente.

Nunca participei em provas. Nem sei se gostaria. Parece-me muita confusão, demasiada gente, trânsito, betão e poluição. Prefiro treinar no pinhal, quase sozinho, na companhia dos pássaros, coelhos, árvores e mais alguém. Quase todas as manhãs, lá pelas 5:45 hrs, lá ando eu correndo à minha maneira no meio da natureza.

O mais giro que me aconteceu nestas aventuras foi numa certa manhã ter encontrado uma linda fêmea passeando pelos mesmos caminhos. Ela mostrou-se receptiva e lá fomos os dois dar uma voltinha juntos. Deixou-me doido a miúda. Esqueci-me completamente das pessoas queridas que tinha em casa à minha espera, esqueci-me do treino e desaparecemos os dois pelo matagal. Depois...ela foi à vida dela e eu dei por mim perdido no pinhal. Desorientei-me e já nem sabia o caminho para casa onde as pessoas que mais me querem já estavam certamente preocupadas. Voltas e mais voltas e lá dei com o caminho.

Que alívio! Que felicidade ser de novo abraçado por quem mais amo! Mas confesso que não sei se me serviu de emenda...

Ah... Falta dizer que me chamo Dipsy e que em muitos dias é graças a mim que a minha dona se levanta de madrugada para ir correr. A propósito, sabem que os vossos amigos peludos de 4 patas podem muito bem ser uns óptimos companheiros de corrida? Mas não se esqueçam que temos de levar identificação connosco para o caso de termos uma aventura parecida...

Ana Pereira, 2001

A Conquista do King

Ana acabou de se divorciar. E na busca incessante da felicidade saiu da sua casa palacial, e foi viver para um sotão alugado. Leva consigo a sua riqueza: a sua filha Inês, sem a qual não lhe seria possível viver.

Aquando da primeira visita ao sotão que veio a alugar, foi recebida agressivamente por dois cães sem raça que viviam naquele quintal, por onde elas teriam de passar para aceder à casa. Eram o Roby e o King.

O Roby tinha um focinho doce, pêlo castanho dourado, luzidio, e acabou por se revelar um vulgar cachorro brincalhão. O King era feio. Rafeiro autêntico, vira-latas, preto, mas já com muitos pêlos brancos da idade, uma orelha caída, partida pelos maus tratos da vida. Pêlo áspero, apesar dos banhos a que era sujeito periodicamente pelos donos cuidadosos. O King não inspirava qualquer simpatia. Era feio, agressivo e antipático.

Aos poucos, Ana foi perdendo o medo. Começou por lhes dar bolachas para que os cães gostassem dela. E resultou. Em pouco tempo, já conseguia entrar e sair de casa sem grandes complicações.

Um dia, vem o Scooby viver com eles (um Terrier agitado e desafiador). O Roby não se importou, mas o King sentindo o seu terreno ameaçado, não gostou nada! Assim como a pequena Inês, que via naquele monte de pêlos em movimento uma ameaça constante.
O Scooby saltitava, não parava, atirava-se às pessoas, punha-lhes as patas em cima exigindo atenção.

Um dia pôs-se de pé em cima da Inês, o que significa patas no pescoço e focinho na cara da miúda, que arranhada e assustada desatou a chorar. Ana gritou com o Scooby, que cobardemente fugiu, e não é que o King desatou a rosnar para o Scooby e daí para a frente nunca mais permitiu que ele se aproximasse sequer da Inês!? Com isto, a pequena Inês, e a Ana começaram a gostar do King, e davam-lhe festinhas e bolachinhas.

Mas o mais impressionante foi o primeiro dia em que o pai da Inês a foi buscar para passar o fim de semana com ela. Sendo a primeira vez, a Ana levou a filha ao portão, e ficou a vê-la entrar no carro do pai, disse-lhe adeus, com uma nostalgia só explicável a quem já passou pelo mesmo, e agarrada às grades do portão, vendo a mãozinha a filha a acenar-lhe e a afastar-se, vêem-lhe as lágrimas aos olhos, e é então que sente um corpo quente e forte encostar-se a si. Era o King! De pé, com as patas nas grades, completamente encostado à Ana, olhando a menina que ia embora, partilhando em perfeita sintonia os sentimentos dela, se vira e lhe dá uma lambidela, acariciando-a com os seus olhos castanhos, com a ternura infinita que só é possível encontar no olhar de um cão! Acho mesmo que o King também chorou naquele momento.

E a partir daí, definitivamente, o King conquistou o coração da Ana e também da Inês, ensinando-lhes que, à semelhança de tantas coisas na vida, aquele cão de mau aspecto não era afinal o que parecia! O King revelou-se um verdadeiro amigo, e hoje é-lhe tão difícil separar-se delas como dos próprios donos!

2002

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

MARATONA DE PARIS 2001 - a minha 1ª Maratona



"Et Voilá! Portugal, un grand pays!".


Levanto os braços e avanço triunfante para a meta, completando pela primeira vez os 42.195 m da maratona. Aquelas palavras foram o melhor dos prémios que alguma vez tive. Sou uma verdadeira vencedora.


Quatro meses de treino específico, interrompido pelo aparecimento e cura de uma fractura de stress. Muitas horas a correr. À chuva, de noite, sózinha, e com o meu cão.Entusiasmo e desânimo. Sentir as lágrimas nos olhos ao som dos carrilhões de Mafra e mal conseguir avançar com dores na canela. Correr 20 minutos e parar a coxear, quando o treino deveria ser de 1h30m. Pensar em desistir da maratona. Pensar em desistir de correr. Quatro meses de dor, sofrimento, incertezas, ânimo e desânimo.


Não desisti!!!


A fractura sarou e consegui fazer a maratona e sou anunciada à chegada à meta. Eu que levei 4h04m!!


Duro?Não!Foi fácil! com algum treino (o que foi possível) e com toda a ajuda do público e da excelente organização foi fácil! Duros foram os quatro meses antecedentes. Mas valeu o esforço.
Quando cheguei ao km 41, tive mesmo pena de só faltarem 1195 metros para aquela festa acabar. Aproveitei e vivi intensamente cada metro que me faltava, como aconselhava a organização, à qual dou a nota máxima, assim como ao público. Nestes últimos metros um palhaço ofereceu-me uma flor, que vou guardar para sempre, assim como a recordação desta experiência absolutamente fantástica e inesquecível.


E em Lisboa..., como seria?

Ana Pereira, Abril 2001

domingo, 25 de maio de 2008

O dia em que me chamaram Vaca

Fim de tarde amena como só Agosto permite. Após mais um dia de trabalho, chego a casa estafada.

Mas hoje, livre das obrigações maternais, pego no cão (pego é como quem diz: ele pesa tanto quanto eu) e vamos treinar para a Baía.

O céu tem a cor do pôr-do-sol e a serenidade é contagiante. Vamos pela areia junto ao rio.

Gaivotas, e alguns pescadores. Ah, como estes treinos são revigorantes: uma verdadeira lufada de ar fresco para os pulmões e para a alma, e um bom exercício para os músculos. É que isto de correr à beira rio com um cão que tem medo da água e que passa o tempo a puxar-nos para a areia seca, tem que se lhe diga!

A dada altura, a uns cinquenta metros do nosso caminho, e com uma vedação a separar-nos, está um grupo de rapazes adolescentes.

De repente, ouço em altos gritos: "Vaca!!! Vaca leiteira!!!" Primeiro fico surpresa. Estou habituada a que não se metam comigo quando levo o cão, mas desta vez a distância e a vedação fez com que os jovens ganhassem "coragem". Logo de seguida tive vontade de lhes gritar que vaca leiteira era a mãezinha deles. Mas como a minha própria mãe me ensinou: mulher honrada não tem ouvidos, resolvi ignorar.

Na realidade não ignorei e a prova disso é que estou aqui a escrever. Numa época em que já não devia fazer sentido a luta da mulher pelo direito à igualdade de oportunidades e de tratamento, como existem jovens com aquele tipo de atitude para com uma mulher que devia ter o direito de vestir uns calções e uma t-shirt e fazer o seu treino sem ser obrigada a ouvir tais "mimos"?

Defensora em absoluto da Revolução de Abril, não deixo de me questionar onde está a Liberdade?

Naqueles rapazes que pensam ter o direito de dizerem o que e a quem quiserem, ou na mulher que tem o direito de vir para a rua correr? Nesta aprendizagem da liberdade estes jovens e originalmente os seus pais, ainda não perceberam que a liberdade de uns acaba quando começa a dos outros.

É mais fácil mudar um regime do que mudar mentalidades. E isso ainda vai levar algumas gerações. Quando será encarado com a mesma naturalidade uma mulher ou um homem a correr?

Não é por acaso que aquelas que correm, ou estão sozinhas, ou então o namorado/marido também corre. Casadas a correr, sem o marido correr também, quantas há? E o contrário? Ah, o contrário já toda a sociedade acha natural: eles correm, elas ficam em casa, ou então tomam conta dos filhos e dão apoio na corrida, que é uma atitude tão bonita! E a sociedade acha isso natural! E o papel da mulher fica cumprido!

Infelizmente, para algumas mulheres, Liberdade é conduzir com o cigarro na boca e dormir com este e aquele. Pois para mim Liberdade é poder correr sem ser importunada. Só quando se mudarem as mentalidades, é que poderá haver realmente Liberdade e Igualdade.

Voltando à vaca fria: Vaca leiteira, eu?! - Para minha contrariedade, só visto o 32 de soutien, e além disso nunca percebi essa mania de se associar a vaca a algo depreciativo e negativo. Eu até acho a vaca um animal muito ternurento e simpático. Não acham?
Ana Pereira - 2001/2002